Por que explicamos tudo isso? Bem, ao transportar essa ideia do mérito para o ambiente escolar, não é incomum identificarmos, sutil ou explicitamente, no saber-fazer de educadores e gestores escolares, a crença na ideologia meritocrática, o que se reflete em aspectos como a maneira que as famílias enxergam a escola e nos papéis que são atribuídos ao professor.
No âmbito das práticas escolares, como já sinalizado, são muitas as táticas e processos vinculados à perspectiva meritocrática, sendo que, no âmbito da avaliação, isso fica bastante explícito. Ganha mais pontos e “passa de ano” aquele estudante que se esforçar mais e assim absorver a maior parte dos conhecimentos escolares. Nesse processo, há um apagamento dos estudantes enquanto sujeitos socioculturais, que são vistos em muitos contextos como seres sem cultura, sem saber, sem história, sem corpo, sem aspirações e desejos próprios. Ou seja, são vistos como papéis em branco, prontos para serem escritos de conhecimentos.
Com isso, a escola ainda deixa prejudicada uma função que é inerente a ela: a da socialização entre os sujeitos que nela estão presentes. Assim, quando a escola deixa essa função essencial de lado, ela contribui para que os estudantes dela se afastem, pois não conecta os conhecimentos escolares com o universo cultural dos estudantes. À medida que a escola vai se consolidando como um mundo à parte para os estudantes, a tendência é que eles se afastem, buscando outros espaços de inserção em suas trajetórias de vida, como o mundo do trabalho, por exemplo.
Vem daí a necessidade cada vez maior de educadores e gestores escolares repensarem a avaliação escolar, os projetos pedagógicos, os tempos e os espaços da escola. Há diversas maneiras de se fazer isso, como propor assembleias, rodas de conversa, fóruns, elaboração de vídeos no youtube, apresentações artísticas etc. Metodologias que estejam mais interligadas com a infância e juventude contemporâneas poderão contribuir para a permanência dos estudantes na escola e para uma caminhada escolar mais longa.
Essa perspectiva corrobora o argumento de que a falta de interesse é um motivo que favorece o abandono escolar, demonstrando que hoje, frente à complexidade do mundo contemporâneo, a escola tem sido pouco atrativa para crianças, adolescentes e, principalmente, para o jovem. Aqui, fazemos, então, uma pergunta ao leitor ou a leitora: como, em sua prática cotidiana, você está colaborando para que haja interesse escolar por parte dos estudantes? Caso você fosse um estudante, você estaria interessado no modelo escolar vigente e no modo como ele é implementado?
Sobre muitos desses fatores externos, a escola tem pouca interferência. Há, porém, razões que levam ao abandono e que estão mais diretamente ligadas ao ambiente escolar. É o caso da repetência e do desinteresse do jovem pelos estudos, motivados pela baixa qualidade do ensino e por um currículo, especialmente no Ensino Médio, enciclopédico e com pouca flexibilidade para escolhas.
Pensando sobre essas questões, quando a escola assume uma lógica meritocrática, autoritária, de controle absoluto dos corpos que ali se presentificam, o estudante é transformado em uma invenção (SACRISTÁN, 2005). Isso significa entender que o estudante, ao assumir a condição de aluno, se configura como uma construção social, legitimada pelo mundo adulto e pelos aspectos e concepções hegemônicas que conformaram a história da educação escolar no Brasil.
Essa ideia pressupõe que as crianças, adolescentes e jovens têm suas vidas organizadas por aqueles a quem foi conferido o poder em nossa sociedade, os adultos, sendo a escola instrumento de imposição de ideias, condutas e comportamentos. É importante ir de encontro a essa perspectiva e considerar, nos processos educativos, os saberes, as vivências culturais e sociais dos estudantes. Além disso, é necessário entender os sentidos que os estudantes hoje atribuem à vida escolar para conhecermos o que pode levá-lo a permanecer na escola e, consequentemente, a aumentar seus anos de escolarização. Concordamos, assim, com a ideia da importância de:
(...) entender os processos escolares, potencializar aqueles que permanecem e dão continuidade aos estudos e contribuir para reforçar as possibilidades da escola, como um local importante de sociabilidade, que pode proporcionar experiências formadoras de ação coletiva e facilitar um espaço de troca. Trata-se de um equipamento social que compõe uma rede de serviços, principalmente para jovens de grupos populares, e deve integrar uma rede de suporte que, dentre outros bens sociais, amplie o sentido da educação para o jovem. Uma escola que tenha como proposição a formação humana plena, facilitando as situações educacionais mais práticas pela transmissão de saberes e conhecimentos úteis ao dia a dia dos jovens, uma escola que construa a articulação da educação com vivências para a atuação na sociedade, em um espaço que seja protegido, física e emocionalmente, para que todas as potencialidades dos jovens aflorem e não feneçam.
É necessário também pensarmos nos educadores como sujeitos socioculturais, pois a lógica de organização escolar que aqui estamos colocando em debate influi inclusive no papel do professor e nas imagens sociais que são vinculadas a ele.
Um bom professor, corriqueiramente, é associado a uma figura rígida, detentora do saber e que consegue controlar a turma para transpassar seu conhecimento com mais facilidade – percepção essa reproduzida em demasia por muitos professores, inclusive. Essa perspectiva não enxerga o professor como sujeito por trás dos papéis atribuídos a ele na escola. Assim, os professores no ambiente escolar também não são vistos como sujeitos detentores de experiências sociais, afetos, desejos, cultura e aspirações sociais.
Ah! E eu vou só falar uma coisa também, que por mais, assim, que eu acho que a família influencia, mas tem a questão da autonomia também. Eu vejo assim, por exemplo, tem uma aluna, por mais que ela está naquele meio que não dá exemplo bom para ela, aí ela tem irmãos que também não seguem os exemplos bons, né, e porque não tem exemplo bom, ela se sobressai. Essa que me intriga, como que ela tem essa autonomia de ser diferente? Isso eu fico intrigada. Você entende? Por exemplo, igual, eu falo pela Ana Luísa, ela tem as irmãs dela, a família dela, tem os alunos que estudam aqui também, aí você vê que todos são assim, têm dificuldade de aprender, não têm higiene, não têm compromisso, né, e ela é diferente. Simplesmente, ela é diferente! Aí, eu acho que o fato dela ter esses exemplos ruins, né, vamos taxar assim, faz com que ela se sobressaia. Essa é uma autonomia dela. Isso é fantástico!
A fala da professora se faz importante para entendermos que esses atravessamentos que compõem as lógicas de organização da escola e as práticas levadas a cabo por ela pairam, de uma maneira geral, no imaginário social como verdade.
Isso leva as famílias dos estudantes, por exemplo, a acreditarem que a escola vai resolver os problemas enfrentados por elas, que seus filhos conseguirão lograr um outro patamar social caso sejam “bons alunos”, apreendam os conteúdos escolares, respeitem suas regras e as formas de funcionamento escolar, ou seja, se disponham a entrar nas rédeas da escola.
Embora ainda haja um longo caminho a se percorrer no que diz respeito a essas dimensões, de modo geral, já estamos sociologicamente conscientes das desiguais condições objetivas de desenvolvimento educacional dos sujeitos a partir de categorias como classe, gênero e raça.