O contexto social em que essa família vive pode sugerir que a negligência da qual é acusada é resultado das condições sociais indignas vivenciadas por essas pessoas, que é, de certo modo, reflexo da negligência do Estado. Esses contextos são, muitas vezes, marcados pela extrema pobreza, pelo uso de drogas e pelo tráfico e pelas violências que se dão no interior da família e no território onde moram. Entretanto, muitas vezes, isso não é considerado nem nas escolas, nem em outros espaços públicos de atendimento às famílias. Assim, elas são as primeiras acusadas de negligência, sobretudo se fizerem parte da classe social desfavorecida economicamente, como afirmam Mata, Silveira e Deslandes (2017):

Se as situações de negligência são rótulos atribuídos preponderantemente às famílias pobres e negligenciadas, sobretudo porque são estas que chegam aos técnicos da rede de assistência e são atendidas em hospitais públicos; as supostas situações de negligência atendidas em hospitais privados ou retidos no seio de uma família de camadas médias ou de elite não se expõem à análise social.

MATA; SILVEIRA; DESLANDES, 2017, p. 7

É muito comum, em territórios marcados pela pobreza, que crianças, adolescentes e jovens tenham que ficar algum período do dia sozinhos em casa para que os pais possam garantir a sobrevivência da família, bem como não é raro que o filho mais velho tome para si algumas responsabilidades domésticas, para compartilhar as tarefas da casa, enquanto a mãe, o pai ou o responsável trabalha.

Essas situações, que são determinadas por condições sociais, precisam ser melhor avaliadas antes de serem taxadas como negligência. A culpabilização de tais situações e relações sociais quase sempre recai nas costas das famílias em situações de pobreza, fato que não é recente, mas que no mundo contemporâneo assume facetas diferenciadas. Fonseca e Cardarello (1999) refletem que:

A passagem do “problema socio-econômico” para a “negligência” revela uma mudança de enfoque na visão da infância pobre e da sua família no Brasil. Se em 1985 considerava-se que motivos como “mendicância”, “maus tratos”, “desintegração familiar” e “doenças do menor” eram decorrência direta de “problemas sócio-econômicos”, hoje, mais do que nunca, a família pobre, e não uma questão estrutural, é culpada pela situação em que se encontram seus filhos. É ela que é “negligente”, maltrata as crianças, as faz mendigar, não lhes proporciona boas condições de saúde, enfim, “não se organiza”. Em suma, parece que a família pobre – e não o “Poder Público” ou “a sociedade em geral” – é o alvo mais fácil de represálias.

FONSECA; CARDARELLO, 1999, p. 107

Não podemos desconsiderar que situações de violências ocorram no interior das famílias, mas é importante situarmos essas ocorrências num contexto mais amplo de direitos não garantidos, de desigualdade social, de marginalização da pobreza e da falta de um viver justo e digno.

Assim, concordamos com a ideia de Mata, Silveira e Deslandes (2017) que, ao abordarem a negligência familiar, não desconhecem que:

Existem situações graves de negligências da família, que podem colocar em risco a vida dos filhos. Todavia, há casos em que certos comportamentos classificados como negligência parental ou familiar refletem vinculação a práticas culturais ou situações provocadas por impossibilidade financeira ou social, entre outras. Há muitas questões do cenário nacional e no contexto familiar que permeiam o tema e reforçam a necessidade de uma reflexão crítica diante da atribuição de uma família como negligente ou negligenciada.


MATA; SILVEIRA; DESLANDES, 2017, p. 8

Ao trazermos essa reflexão sobre a relação entre família e escola, apontamos para a necessidade de educadores e gestores escolares, principalmente das escolas públicas, repensarem as estratégias de aproximação das famílias com as escolas, ressignificando o olhar sobre tais famílias.

O papel da escola para com essas famílias se complexifica à medida em que essa instituição também passa a ser pertencente a uma rede de proteção. A educação oferecida aos estudantes dessas famílias deve considerar seus universos socioculturais, as condições de vivência desse público.

Leia também o texto de Juarez Tarcisio Dayrell, A escola como espaço socio-cultural.

Para isso, é preciso reverter o olhar para os coletivos populares, para as famílias que ainda não têm um justo e digno viver, mas que se reconhecem sujeitos com conhecimentos, de valores e culturas, como nos diz Arroyo (2012).