É muito comum escutarmos entre educadores e gestores escolares expressões como “educação vem de família” ou “esse aluno é de uma família desestruturada”, sendo que, às vezes, a desestrutura citada tem a ver simplesmente com uma composição de família que se distancia do modelo ideal.

Nesse sentido, emerge a dimensão da “negligência”, palavra também muito utilizada nas escolas e que remete ao afastamento das famílias da vida escolar dos estudantes. Contudo, é preciso refletirmos sobre esse termo, no sentido de desconstruir o que entendemos por negligência familiar. Para melhor aproveitarmos as reflexões, vale dizer que a negligência é classificada como um tipo de violência contra crianças, adolescentes, adultos, idosos. Tem também a ver com o abandono pelas famílias e a (des)responsabilização de processos que são conferidos aos pais na dinâmica familiar, segundo Mata, Silveira e Deslandes (2017).

Vejamos duas situações problematizadoras a fim de refletirmos sobre o que temos entendido como negligência. A primeira está relacionada com a morte de um garoto de 11 anos de classe média, enquanto a segunda apresenta o diálogo de uma educadora com um estudante de escola pública em um território marcado por pobreza.

Situação problematizadora: primeiro caso

Caso de negligência ganha repercussão após a morte de um menino de 11 anos. A criança se queixava de abandono da família, ocorrido pela morte da mãe em 2010 e pela ausência do pai. O menino procurou o juiz para trocar de família antes de vir a óbito (assassinado).

Figura 8: história de negligência familiar. Fonte: Campos, Freitas e Bortolotto (2014). Elaboração: LANTEC-UFSC (2018). Acessar notícia completa.
Situação problematizadora: segundo caso

João - Tati (educadora), eu tava de olho vermelho e minha mãe “Ô menino, onde cê tá fumando essa maconha? Deixa eu cheirar sua boca”. E eu “Que isso ó?!”. Quando minha mãe me bate, eu corro pra casa do meu avô, mas não consigo correr pra rua.

 

Elizabeth - Vixi. Ó, uma vez minha mãe me deu um tapa aqui [apontou para cara], só porque eu tava com olho pequeno e vermelho. Ela achou que eu tinha fumado maconha.

Educador - Mas isso é medo, gente, medo de vocês fazerem coisa errada.

João - Mas quando minha mãe me bate, eu não consigo correr pra rua, eu só consigo cortar o caminho da casa do meu avô. Tipo assim ó. Aqui tá a rampa [acenando com os dedos na mesa], se descer aqui tá na rua e a casa do meu avô tá no meio da rampa. Eu não consigo ir pra rua, vou direto pra casa do meu avô.

João - E quando minha mãe chega bêbada e inventa de me pegar pelo gogó? Esses dias eu quase matei minha mãe, ela chegou bebona, né. Aí ela “ô menino, cê tá mexendo com maconha”. Pra quê. Aí eu: “vamo vê então se eu vou mexer quando crescer”. Ela me pegou pelo gogó... Pra quê. Eu tava em cima da minha cama. Já peguei ela assim ó, ela me puxou, se eu não puxo ela pra trás,ela ia bater de cabeça na quininha da minha cama. Minha mãe chega bêbada e ela não quer saber de nada não, ela quer é brigar comigo e com a belinha [irmã]. Até meu vô que é pai dela, ela fica brigando.

Educadora - Ela é uma boa mãe, o problema dela é a bebida.

João - Eu sô a fim de crescer.

Educadora - O problema dela é a bebida.

João - Esses dias eu briguei com ela, dormi fora de casa quatro dias, ela ficou doidinha, se não fosse meu irmão, ela não tinha me achado. Cheguei em casa, né, aí ela: "Oh, meu filho, onde você tava?"

Educadora - Preocupação.

João - Então, por que na hora de bater não pensa nisso? Meu irmão já falou: bater não adianta nada, não.

Educadora - Sua mãe criou seu irmão, num criou?

João - Criou.

Educadora - O que seu irmão faz hoje? Ele é drogado?

João - Não.

Educadora - Viciado?

João - Não.

Educadora -  Vende maconha?

João - Não.

Educadora - O que ele faz?

João - Trabalha.

Educadora - O que ele faz? - mais enfática.

João - Trabalha.

Educadora - De quê? Ele é policial, num é?

João - Segurança e policial.

Educadora - Pois é, você acha que se ela fosse uma má mãe ele estaria como?

Figura 9: conversa entre professora e alunos. Elaboração: LANTEC-UFSC (2018).

As situações apresentadas revelam realidades e situações distintas, as quais são muito interessantes para podermos pensar detalhes em relação ao que é chamado de negligência familiar.

No primeiro caso, é mais clara a ideia de negligência, uma vez que a criança procurou um juiz do Ministério Público para trocar de família, mas não foi atendido, pois seu corpo não apresentava marcas evidentes de violência. Assim, a criança permaneceu na guarda de sua família, na tentativa de uma possível reaproximação, o que não aconteceu, como vimos no relato apresentado.

O segundo caso, que também apresenta violência física, se remete a um jovem estudante, reconhecido na escola por ter uma “família desestruturada”. Contudo, diferentemente do caso anterior, podemos nos questionar. Há negligência nessa família ou é uma família negligenciada?