Unidade 4

O território educativo entre disputas e relações de poder

 

Um aspecto importante que se faz presente na constituição dos territórios educativos consiste nas disputas pelo espaço, as quais se estabelecem por meio de relações de poder entre diferentes sujeitos. Essas relações, em territórios marcados pela pobreza, são caracterizadas por dinâmicas sociais conhecidas, como as disputas pelo tráfico de drogas e as violências daí decorrentes.

Visualizar essas dimensões de poder intrínsecas à constituição de territórios educativos se faz necessário, pois são elementos que podem se tornar um limite para que a escola extrapole seus muros e expanda seu espaço educativo.

Observe o desenho abaixo, realizado por um estudante de escola pública morador de periferia que representou um recorte do seu bairro e algumas relações inerentes ao território em que vive:

Figura 5: mapa mental - o território e suas relações de poder. Fonte: Carvalho (2014).

Podemos perceber que, no mesmo território, o estudante representou espaços de lazer e brincadeiras, juntamente com situações de violência, por meio da representação de uma pessoa apontando uma arma de fogo e de um carro de polícia perseguindo uma motocicleta. Isso nos revela que muitas crianças, adolescentes e jovens que vivem em territórios marcados pela pobreza convivem em seu cotidiano com essas relações.

A escola precisa então identificá-las e considerá-las também como integrantes do território; pois, ao buscar a apropriação dos espaços do bairro, no intuito de apropriar-se deles em determinados momentos, ela entra nessas disputas pelo espaço e nessas relações de poder. Vejamos o relato de uma coordenadora pedagógica sobre o caso de uma praça, localizada em um bairro de periferia, que era utilizada por uma escola pública para o desenvolvimento de atividades educativas: a coordenadora, ao propor a utilização do espaço, encarou as relações de poder ali existentes ligadas ao tráfico de drogas e episódios de violência, o que a levou a criar, via escola, novas territorialidades, naquele espaço, em determinados momentos.

A gente utiliza a praça pra oficina de fanfarra e skate, só que a praça é perto do posto e aí ‘tem’ aquele barulhão, né? E aí veio uma senhora reclamar com a gente que estávamos ocupando a praça e fazendo barulho... E aí fomos conversando com ela devagarzinho e explicando que ali também era um espaço de usuário de droga e tal, e inclusive tinha um professor e que também estava lá e perguntou: “Quando tinha ou tem usuário de droga, a senhora também foi lá reclamar com ele e a senhora achou ruim com ele também?” E aí ela disse: “Claro que não né?”, e então foi isso que nós questionamos, né? O usuário de droga pode usar a praça e a senhora não reclama e a gente não pode usar. E aí foi o que a gente falou, nós estamos tentando ocupar a praça de uma outra forma e estamos até hoje lá. E não era que era sempre não, mas, pra gente utilizar a praça, tinha que ter sempre uma ronda da polícia lá pra gente ficar ali com as crianças, e porque vira e mexe ‘tinha’ gente usando droga ali e hoje tá tranquilo, e acho mais que hoje o espaço é nosso, pelo menos quando estamos lá. E hoje, mesmo sem a ronda da polícia, nós estamos lá. É claro que às vezes aparece, mas mesmo assim já estamos lá e ocupamos o espaço. O ruim é que os meninos estão ali, e eles veem né, mas estamos ressignificando esse espaço.


Relato da coordenadora pedagógica

Como podemos perceber, para que escola pudesse utilizar a praça, a profissional empreendeu um diálogo cuidadoso com a comunidade, sensibilizando-a para a possibilidade de ocupação do espaço pelas crianças, adolescentes e jovens. Isso fez com que novas relações fossem criadas na praça, as quais foram ali ressignificadas, criando-se novas territorialidades sobre aquele espaço.

É importante observar também que, como uma das estratégias de ocupação da praça, a escola desenvolveu oficinas que modificaram esteticamente o espaço, marcando, ali, sua presença. Ressaltamos que esse movimento, desenvolvido pela escola, não significa a anulação dos conflitos e das relações de poder que ali sempre se deram, nem de outras dinâmicas que fazem parte daquele território, pois um mesmo espaço pode ser territorializado de maneiras distintas e por diferentes sujeitos.

O movimento da escola foi essencial para ela e para o território, pois desencadeou um processo de transformação do espaço. A apropriação da praça, pela presença dos estudantes, criou novas relações sobre esse território, que passaram a ser consideradas e respeitadas por outros grupos que disputavam seu domínio, levando também à reidentificação do espaço. A esse respeito:

todas as re-significações ou, no nosso caso, re-identificações, estão mergulhadas em relações de poder e, deste modo, sujeitas aos mais diversos jogos, ora mais impositivos, ora mais abertos, que este poder implica dentro de uma sociedade profundamente desigual e marcada por múltiplos processos de dominação. Identificar-se é também, de alguma forma, classificar, estas classificações com que re-siginificamos o mundo, nós e os outros, inclusive através dos territórios, são objetos de intensas disputas entre aqueles que têm o poder de formular e mesmo fixar estas classificações.

HAESBAERT, 2007, p. 37

Assim, podemos dizer que a territorialização dos espaços do bairro pela escola ocorre em convívio e, por vezes, em disputa com outras relações e grupos, que também imprimem identidades nos espaços que apropriam, como grupos de jovens que frequentam a praça nos fins de semana; a polícia, que, muitas vezes, marca  presença naquele lugar; bem como usuários de drogas que, por vezes, ainda utilizam o espaço.

Com isso, concebe-se o território educativo também a partir de um jogo de poder entre grupos que desejam imprimir suas identidades no espaço. A escola entra nesse jogo ao buscar o uso e a apropriação do espaço a partir da ocupação pelo movimento de inserção dos educandos e educadores nesses lugares e em encontro com outros grupos sociais ali presentes.