Dessa maneira, para esse autor, o pensamento abissal se materializa com mais força nos campos do direito e da ciência, inclinando e hierarquizando saberes. Assim, a ciência moderna passa a ser legitimada pelo pensamento abissal, enquanto saberes outros são invisibilizados, como nos mostra Boaventura de Sousa Santos:
[...] conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas do outro lado da linha. Eles desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso. É inimaginável aplicar-lhes não só a distinção científica entre verdadeiro e falso, mas também as verdades inverificáveis da filosofia e da teologia que constituem o outro conhecimento aceitável deste lado da linha. Do outro lado da linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjectivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar‑se objectos ou matéria‑prima para a inquirição científica.
As consequências desse processo de consolidação do pensamento abissal para a escola são várias e, ainda hoje, estão presentes e têm implicações nas trajetórias escolares dos sujeitos. Por exemplo, mesmo quando a escola busca ser inclusiva e almeja acolher estudantes de periferias e ocupações, jovens de diferentes orientações sexuais, crianças, adolescentes e jovens negros, quilombolas, indígenas, camponeses etc., no intuito de educá-los, quase sempre submete esses estudantes a uma cultura que não dialoga com suas experiências de vida, tampouco com a realidade do mundo social de onde vêm.
Assim, o exercício de educá-los torna-se também o exercício de aculturá-los, na medida em que esses sujeitos passam a ter que seguir padrões universalizantes de comportamento e de racionalidade que não são os seus, que não estão inseridos em sua cultura. Desse modo, a escola, em suas relações e em sua organização, distancia-se da vida cotidiana desses sujeitos, tornando-se um mundo à parte, sem conexão com suas realidades sociais e étnicas. Estar em um ambiente onde o sujeito tem suas especificidades culturais não consideradas, onde o conhecimento não dialoga com sua realidade, muitas vezes se torna um elemento de abandono escolar e promove menos aprendizado, levando o estudante à repetência.
Por isso, caro educador, é necessário considerarmos a diversidade de classe, de gênero e de raça representadas pelos sujeitos que estão na escola. Ao falarmos de diversidade étnica e racial, é necessário lembrarmos que vivemos em um País marcado por miscigenação entre raças e etnias. Essa diversidade traz impactos diretos para a escola, dentre eles o racismo, que pode ser explícito ou implícito, dado de forma disfarçada, contida ou subentendida, já que, no Brasil, falar sobre racismo ainda é um tabu, o que podemos entender como racismo velado.
E você, profissional da educação, já vivenciou episódios de racismo em seu ambiente de trabalho? Já se envolveu em alguma atividade pedagógica sobre racismo? Já pensou em como a escola pode diminuir os conflitos inerentes ao preconceito racial?
Quando nos deparamos, por exemplo, com as populações quilombolas, sua história de resistência, ligada à fuga de condições indignas vividas por eles enquanto escravizados, evidenciamos a existência de territórios marcados pela conquista da liberdade e a organização coletiva. Esses processos rompem com modelos universalizantes na luta pela garantia de direitos, inclusive do direito à escola.
Os quilombos foram reconhecidos pela constituição de 1988, depois de muita luta do movimento negro, que, principalmente, a partir da década de 1970, no Brasil, entrou no espaço público para discutir questões como racismo. Essas conquistas trouxeram tensões importante para a cena social, inclusive para a escola, que deve considerar as especificidades desse público em seus processos educativos.
Essa tensão no campo educacional reside no fato de que “o reconhecimento do direito das comunidades quilombolas trouxe repercussões também no campo educacional, explicitando o racismo presente nos currículos escolares, nos livros didáticos, e denunciando a cultura educacional ‘embranquecedora’ presente em muitas escolas brasileiras (LEITE, 2016, p. 46).
Mesmo que esse processo de afastamento da escola em relação à realidade cultural e histórica dos povos quilombolas não seja uma regra, a violência do processo de imposição da cultura escolar sobre alguns sujeitos é fortemente presente, fator este que nos impele a olhar mais detidamente para os(as) estudantes beneficiários(as) do Programa Bolsa Família (PBF), pois muitos deles são moradores de periferia, do interior do Brasil, negros, indígenas e camponeses.
