O trabalho de crianças, adolescentes e jovens não é nenhuma novidade histórica

No sinal fechado
Ele vende chiclete
Capricha na flanela
E se chama Pelé
Pinta na janela
Batalha algum trocado
Aponta um canivete
E até
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Sobe o Borel
Meio se maloca
Agita numa boca
Descola uma mutuca
E um papel
Sonha aquela mina, olerê
Prancha, parafina, olará
Dorme gente fina
Acorda pinel
Zanza na sarjeta
Fatura uma besteira
E tem as pernas tortas
E se chama Mané
Arromba uma porta
Faz ligação direta
Engata uma primeira
E até
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Na contramão
Dança pára-lama
Já era pára-choque
Agora ele se chama
Emersão
Sobe no passeio, olerê
Pega no Recreio, olará
Não se liga em freio
Nem direção
No sinal fechado
Ele transa chiclete
E se chama pivete
E pinta na janela
Capricha na flanela
Descola uma bereta
Batalha na sarjeta
E tem as pernas tortas
Quando que essa música do Chico Buarque começou a fazer sentido? Quando surgiu e por que surgiu o trabalho infantil? Em uma análise histórica, entende-se que o trabalho infantil é resultado das transformações sociais decorrentes do modo como a produção econômica, desde a Revolução Industrial, no século XVIII, passou a utilizar máquinas no processo produtivo fabril.
Apesar do trabalho infantil não ter sido uma invenção do capitalismo, já que a criança era parte da economia agrícola antes mesmo da indústria emergir na sociedade capitalista “[...] e como tal permaneceu até ser resgatada pela escola” (THOMPSON, 1987, p. 203), as máquinas substituíram o trabalho humano nas tarefas mais pesadas, permitindo que indivíduos com menor força física – como mulheres e crianças – fossem integrados ao trabalho nas indústrias.
Com isso, um processo de exploração do trabalho também se inseriu no contexto: esperava-se um maior lucro através do aumento do número de trabalhadores. Além disso, as crianças possuem membros mais flexíveis e maior agilidade em relação aos adultos, executando tarefas minuciosas com grande precisão.
Por isso, aqui vale uma ressalva, leitor ou leitora: a diferença substancial que separa entendimentos sobre o trabalho infantil antes e depois da inserção do sistema capitalista é que, antes da inserção na indústria, o trabalho infantil não era monótono e a mesma função não se prolongava por longas horas e dias consecutivos, por exemplo.
A introdução ao trabalho ocorria no âmbito da economia familiar, de modo gradual e respeitando as próprias capacidades da criança.

E como era o trabalho das crianças, dos(as) adolescentes e dos(as) jovens nesse período de emersão do capitalismo? Bem, esses sujeitos eram recrutados para o trabalho por meio de anúncios em jornais. Os industriais buscavam, geralmente, os que aparentassem a idade de 13 anos, diante de um médico, mesmo sendo mais jovens. Isso porque a jornada de menores dessa idade limitava-se a seis horas diárias. Todavia, como era comum a falsificação de atestados de idade, indivíduos muito jovens eram postos no trabalho em jornadas tão longas quanto a dos adultos – de 14 a 16 horas.
Também, nessa época, a situação geral de quem trabalhava era de extrema precariedade e pobreza. O ambiente era insalubre ao extremo: o ar, contaminado; a água, poluída; as construções, mal ventiladas; as roupas, de má qualidade, não isolavam do frio; o saneamento básico, inexistente; o suporte médico, escasso e muito caro (ENGELS, 2010).
Aquelas crianças que sobreviviam eram integradas ao corpo operário assim que alcançassem idade suficiente. Suas funções não tinham grande diferenciação da executada por adultos: eram submetidas ao mesmo ritmo de trabalho mecânico e repetitivo, por longas horas diárias. Frequentemente, ocorriam casos de morte por acidentes – como afogamento, esmagamento, queda – e de maus tratos por parte dos encarregados, que se utilizavam de meios perversos (açoitamento, acorrentamento, tortura) para que as crianças trabalhassem no ritmo adequado (ENGELS, 2010).

Esse processo gradativo, permeado de avanços e retrocessos, passou pela própria constituição do ambiente escolar, bem como do tempo para frequentar as aulas. A escola, como a conhecemos na maior parte do mundo, teve sua origem na era da Revolução Industrial, e foi concebida com a ideia de aplicar o modelo das fábricas no ambiente escolar. As crianças, os adolescentes e os jovens frequentavam aulas à noite, nos finais de semana ou concentradas em alguns meses do ano.
A obrigatoriedade de frequentar escolas não retirou completamente as crianças, os adolescentes e os jovens do mundo do trabalho na indústria naquele período: eles passaram a frequentar um espaço específico apenas com o propósito de atender a normatizações. A fiscalização era falha e as leis tinham várias brechas, das quais os industriais se aproveitavam para manter crianças, adolescentes e jovens no trabalho. Entretanto, as leis fabris consistiram nas primeiras ações efetivas responsáveis por afastar esses sujeitos da indústria. Com este processo, o trabalho para as crianças, os adolescentes e jovens tornou-se ilegal.
A exploração da força de trabalho infantil também apresenta-se como uma objetividade do processo de industrialização brasileiro, que ocorreu no final do século XIX e início do século XX. Parcela significativa da força de trabalho provinha de crianças filhas de imigrantes europeus, mais especificamente:
[...] em 1890, segundo a Repartição Estatística e Arquivo do Estado, aproximadamente 15% do total da mão de obra absorvida em estabelecimentos industriais da cidade eram crianças e adolescentes. Em 1920, o já citado recenseamento concluía que, considerada a totalidade do estado de São Paulo, 7% da mão de obra empregada no setor secundário eram constituídos por esses trabalhadores.
De forma muito similar ao que ocorria na Europa – similaridade esta justificada pela submissão às mesmas relações capitalistas de produção – o trabalho infantil na indústria brasileira ocorria em ambientes fabris insalubres. Uma das características enfatizadas por Moura (1999) é a má ventilação daqueles espaços, que causava intoxicações, problemas respiratórios e servia como propagador de doenças. Também eram comuns acidentes e maus tratos às crianças por parte dos supervisores – ambas, muitas vezes, como consequências diretas das brincadeiras que os jovens trabalhadores desenvolviam durante suas jornadas.
Logo, as condições precárias a que as crianças eram submetidas causavam doenças sérias, prejudicando toda a vida e o desenvolvimento destas – além de levar muitas à morte.
Sobre a legislação que visa garantir às crianças a proteção ao trabalho infantil, e, retomando a explicação histórica, como aponta Moura (1999), o Decreto n.º 2918/1918 obrigava menores a terem certificado do primário concluído, bem como atestado médico que comprovasse condições físicas para o trabalho. O mesmo decreto também proibia o emprego de adolescentes entre 12 a 15 anos em ambientes insalubres, com riscos de acidentes, funções muito cansativas ou em fábricas de bebidas alcoólicas. Mas será que isso era cumprido? Será que é levado a cabo até hoje? O que você pensa sobre isso?
Pensando no “hoje”, entendemos que o lento processo de retirada de crianças, adolescentes e jovens das fábricas não significa sua exclusão do mundo do trabalho. O que ocorre é uma complexificação na forma assumida pelo trabalho infantil: passou a ser realizado em ambientes pulverizados, privados e familiares, sem contratos formais e/ou escamoteados sob a máscara da “ajuda”.
Embora muitas vezes despojados das formas assalariadas tipicamente capitalistas, o trabalho desempenhado pelas crianças apresenta-se imbricado à indústria – seja na produção de matéria-prima na pequena propriedade familiar ou pelo deslocamento de parte do processo produtivo da fábrica para o espaço familiar (CONDE, 2012; AUED; VENDRAMINI, 2009).
Atentando-se aos números, também é relevante ressaltar que, no total de crianças trabalhadoras no Brasil no ano de 2014, 2.676.519 (ou 80,3%) estudavam, enquanto outras 654.859 (ou 19,7%) não estudavam. A maior concentração de crianças que não estuda se encontra nos setores de comércio e reparação (25,3%), na agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e aquicultura (22%) e na construção (14,8%). Isso nos revela que o trabalho infantil não significa necessariamente a retirada da criança da escola. Grande parte destas, na verdade, desempenha uma dupla jornada: trabalham no período em que não estão na escola e, ainda mais intensamente, nas férias escolares.
É comum ainda, conforme Conde (2012), que os adolescentes passem a frequentar o Ensino Médio no período noturno a fim de ter o dia todo “livre para o trabalho” – contraditoriamente, como demanda o sistema capitalista de produção. Pensando em tudo isso, entende-se que, radicado em ambientes privados e longe do alcance da legislação, o trabalho infantil torna-se invisível aos olhos pouco atentos. Então, vamos nos atentar a isso?
