UNIDADE 1

O trabalho de crianças, adolescentes e jovens não é nenhuma novidade histórica

No sinal fechado
Ele vende chiclete
Capricha na flanela
E se chama Pelé
Pinta na janela
Batalha algum trocado
Aponta um canivete
E até
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Sobe o Borel
Meio se maloca
Agita numa boca
Descola uma mutuca
E um papel
Sonha aquela mina, olerê
Prancha, parafina, olará
Dorme gente fina
Acorda pinel
Zanza na sarjeta
Fatura uma besteira
E tem as pernas tortas
E se chama Mané
Arromba uma porta
Faz ligação direta
Engata uma primeira
E até
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Na contramão
Dança pára-lama
Já era pára-choque
Agora ele se chama
Emersão
Sobe no passeio, olerê
Pega no Recreio, olará
Não se liga em freio
Nem direção
No sinal fechado
Ele transa chiclete
E se chama pivete
E pinta na janela
Capricha na flanela
Descola uma bereta
Batalha na sarjeta
E tem as pernas tortas

Pivete, Francis Hime - Chico Buarque (1978)

Quando que essa música do Chico Buarque começou a fazer sentido? Quando surgiu e por que surgiu o trabalho infantil? Em uma análise histórica, entende-se que o trabalho infantil é resultado das transformações sociais decorrentes do modo como a produção econômica, desde a Revolução Industrial, no século XVIII, passou a utilizar máquinas no processo produtivo fabril.  

Apesar do trabalho infantil não ter sido uma invenção do capitalismo, já que a criança era parte da economia agrícola antes mesmo da indústria emergir na sociedade capitalista “[...] e como tal permaneceu até ser resgatada pela escola” (THOMPSON, 1987, p. 203), as máquinas substituíram o trabalho humano nas tarefas mais pesadas, permitindo que indivíduos com menor força física – como mulheres e crianças – fossem integrados ao trabalho nas indústrias.

Com isso, um processo de exploração do trabalho também se inseriu no contexto: esperava-se um maior lucro através do aumento do número de trabalhadores. Além disso, as crianças possuem membros mais flexíveis e maior agilidade em relação aos adultos, executando tarefas minuciosas com grande precisão.

Por isso, aqui vale uma ressalva, leitor ou leitora: a diferença substancial que separa entendimentos sobre o trabalho infantil antes e depois da inserção do sistema capitalista é que, antes da inserção na indústria, o trabalho infantil não era monótono e a mesma função não se prolongava por longas horas e dias consecutivos, por exemplo.

A introdução ao trabalho ocorria no âmbito da economia familiar, de modo gradual e respeitando as próprias capacidades da criança.

Figura 4: mão queimada por ácido pela quebra da castanha do caju. Fonte: Correio Nagô ([201-?]).

E como era o trabalho das crianças, dos(as) adolescentes e dos(as) jovens nesse período de emersão do capitalismo? Bem, esses sujeitos eram recrutados para o trabalho por meio de anúncios em jornais. Os industriais buscavam, geralmente, os que aparentassem a idade de 13 anos, diante de um médico, mesmo sendo mais jovens. Isso porque a jornada de menores dessa idade limitava-se a seis horas diárias. Todavia, como era comum a falsificação de atestados de idade, indivíduos muito jovens eram postos no trabalho em jornadas tão longas quanto a dos adultos – de 14 a 16 horas.

Também, nessa época, a situação geral de quem trabalhava era de extrema precariedade e pobreza. O ambiente era insalubre ao extremo: o ar, contaminado; a água, poluída; as construções, mal ventiladas; as roupas, de má qualidade, não isolavam do frio; o saneamento básico, inexistente; o suporte médico, escasso e muito caro (ENGELS, 2010).

Aquelas crianças que sobreviviam eram integradas ao corpo operário assim que alcançassem idade suficiente. Suas funções não tinham grande diferenciação da executada por adultos: eram submetidas ao mesmo ritmo de trabalho mecânico e repetitivo, por longas horas diárias. Frequentemente, ocorriam casos de morte por acidentes – como afogamento, esmagamento, queda – e de maus tratos por parte dos encarregados, que se utilizavam de meios perversos (açoitamento, acorrentamento, tortura) para que as crianças trabalhassem no ritmo adequado (ENGELS, 2010).

Figura 5: criança trabalhando em semáforo. Fonte: Acervo do TMT/UFSC.

Esse processo gradativo, permeado de avanços e retrocessos, passou pela própria constituição do ambiente escolar, bem como do tempo para frequentar as aulas. A escola, como a conhecemos na maior parte do mundo, teve sua origem na era da Revolução Industrial, e foi concebida com a ideia de aplicar o modelo das fábricas no ambiente escolar. As crianças, os adolescentes e os jovens frequentavam aulas à noite, nos finais de semana ou concentradas em alguns meses do ano.

 

A obrigatoriedade de frequentar escolas não retirou completamente as crianças, os adolescentes e os jovens do mundo do trabalho na indústria naquele período: eles passaram a frequentar um espaço específico apenas com o propósito de atender a normatizações. A fiscalização era falha e as leis tinham várias brechas, das quais os industriais se aproveitavam para manter crianças, adolescentes e jovens no trabalho. Entretanto, as leis fabris consistiram nas primeiras ações efetivas responsáveis por afastar esses sujeitos da indústria. Com este processo, o trabalho para as crianças, os adolescentes e jovens tornou-se ilegal. 

A exploração da força de trabalho infantil também apresenta-se como uma objetividade do processo de industrialização brasileiro, que ocorreu no final do século XIX e início do século XX. Parcela significativa da força de trabalho provinha de crianças filhas de imigrantes europeus, mais especificamente:


[...] em 1890, segundo a Repartição Estatística e Arquivo do Estado, aproximadamente 15% do total da mão de obra absorvida em estabelecimentos industriais da cidade eram crianças e adolescentes. Em 1920, o já citado recenseamento concluía que, considerada a totalidade do estado de São Paulo, 7% da mão de obra empregada no setor secundário eram constituídos por esses trabalhadores.

MOURA, 1999, p. 263

De forma muito similar ao que ocorria na Europa – similaridade esta justificada pela submissão às mesmas relações capitalistas de produção – o trabalho infantil na indústria brasileira ocorria em ambientes fabris insalubres. Uma das características enfatizadas por Moura (1999) é a má ventilação daqueles espaços, que causava intoxicações, problemas respiratórios e servia como propagador de doenças. Também eram comuns acidentes e maus tratos às crianças por parte dos supervisores – ambas, muitas vezes, como consequências diretas das brincadeiras que os jovens trabalhadores desenvolviam durante suas jornadas. 

Logo, as condições precárias a que as crianças eram submetidas causavam doenças sérias, prejudicando toda a vida e o desenvolvimento destas – além de levar muitas à morte.

Sobre a legislação que visa garantir às crianças a proteção ao trabalho infantil, e, retomando a explicação histórica, como aponta Moura (1999), o Decreto n.º 2918/1918 obrigava menores a terem certificado do primário concluído, bem como atestado médico que comprovasse condições físicas para o trabalho. O mesmo decreto também proibia o emprego de adolescentes entre 12 a 15 anos em ambientes insalubres, com riscos de acidentes, funções muito cansativas ou em fábricas de bebidas alcoólicas. Mas será que isso era cumprido? Será que é levado a cabo até hoje? O que você pensa sobre isso?

Pensando no “hoje”, entendemos que o lento processo de retirada de crianças, adolescentes e jovens das fábricas não significa sua exclusão do mundo do trabalho. O que ocorre é uma complexificação na forma assumida pelo trabalho infantil: passou a ser realizado em ambientes pulverizados, privados e familiares, sem contratos formais e/ou escamoteados sob a máscara da “ajuda”.

Embora muitas vezes despojados das formas assalariadas tipicamente capitalistas, o trabalho desempenhado pelas crianças apresenta-se imbricado à indústria – seja na produção de matéria-prima na pequena propriedade familiar ou pelo deslocamento de parte do processo produtivo da fábrica para o espaço familiar (CONDE, 2012; AUED; VENDRAMINI, 2009).

Atentando-se aos números, também é relevante ressaltar que, no total de crianças trabalhadoras no Brasil no ano de 2014, 2.676.519 (ou 80,3%) estudavam, enquanto outras 654.859 (ou 19,7%) não estudavam. A maior concentração de crianças que não estuda se encontra nos setores de comércio e reparação (25,3%), na agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e aquicultura (22%) e na construção (14,8%). Isso nos revela que o trabalho infantil não significa necessariamente a retirada da criança da escola. Grande parte destas, na verdade, desempenha uma dupla jornada: trabalham no período em que não estão na escola e, ainda mais intensamente, nas férias escolares.

É comum ainda, conforme Conde (2012), que os adolescentes passem a frequentar o Ensino Médio no período noturno a fim de ter o dia todo “livre para o trabalho” – contraditoriamente, como demanda o sistema capitalista de produção. Pensando em tudo isso, entende-se que, radicado em ambientes privados e longe do alcance da legislação, o trabalho infantil torna-se invisível aos olhos pouco atentos. Então, vamos nos atentar a isso?

Figura 6: ilustração sobre a diferença entre brincadeira e trabalho. Elaboração: LANTEC-UFSC (2018).