Unidade 2

Especificidades do desenvolvimento infantil - por que o trabalho precoce é tão prejudicial?

 

Por que toda criança precisa brincar (muito)?
Brincando, elas aprendem a escolher: uni-duni-tê.
aprendem a imaginar: esta poça d’água vai ser o mar.
aprendem a perseverar: caiu o castelo, vou fazer de novo.
aprendem a imitar: eu era o motorista - brrrrrrum.
aprendem a criar: dou um nó aqui, outro aqui e tá pronto o circo.
aprendem a descobrir: misturei amarelo e azul, olha o que deu.
aprendem a confiar em si: olha o que eu consegui fazer.
aprendem novos conhecimentos: 28, 29, 30, lá vou eu!
aprendem a fantasiar: daí a gente voava.
aprendem novas habilidades: vou fazer o cabelo da minha fada cacheado.
aprendem a partilhar: tira, bota, deixa ficar.
aprendem a inventar: essa tampinha de garrafa vai ser o pratinho deles.
aprendem a pensar logicamente: joga a bola pra ele!
aprendem a pensar narrativamente: vou te contar.
aprendem a interagir: posso brincar com vocês?
aprendem a cooperar: dá a mão que eu te ajudo.
aprendem a questionar: será que é assim mesmo?
aprendem a memorizar: vamos ver quem pula corda até cem?
aprendem a conhecer suas forças: deixa que eu defendo.
aprendem a conhecer seus limites: tô com medo.
aprendem a encorajar: vem que eu te seguro.
aprendem a fazer julgamentos: assim não vale.
aprendem a analisar: os grandes aqui, os pequenos ali.
aprendem a devanear: hã?
aprendem a compaixão: dá a mão que eu te puxo.
aprendem a fazer analogias: aquela nuvem não parece um cavalo?
aprendem a organizar: ó que legal a minha fila de carrinhos.
aprendem a fazer cultura: vamos brincar de inventar piada?
aprendem a compartilhar: pega essa boneca que eu pego aquela.
aprendem a perdoar: tudo bem, já passou.
aprendem a desbravar: vamos ver o que tem lá?
aprendem a construir: era uma vez uma cidade assim.
aprendem a destruir: vamos desmanchar pra fazer outro.
aprendem a sentir: fiquei com o olho cheio d’água.
aprendem a rir: ra-ra-rá, lembra aquela hora?
aprendem a olhar: acho que aquela graminha ali é um gafanhoto.
aprendem a ver: você tá triste?

Gilka Girardelo

Com o escrito de Gilka Girardelo, vamos pensar sobre o que seria a infância? Entende-se que a infância é um período da vida humana caracterizado por especificidades sociais e biológicas. Esse período é compreendido como um momento privilegiado para a inserção dos indivíduos no repertório cultural humano (MELLO, 2010) em que ocorre a maior apropriação de saberes, habilidades e comportamentos construídos social e historicamente através da atividade humana com seus pares e, principalmente, na transformação da natureza.

Como podemos refletir sobre o trabalho infantil? Primeiro, vamos pensar sobre o trabalho em seu sentido ontológicocomo aspecto fundante do ser social. O trabalho corresponde à atividade humana de transformação da natureza, de forma a torná-la útil a si e a satisfazer suas necessidades. 

Como processo dialético que é, a partir do trabalho, o homem também transforma a si mesmo, adquirindo novas habilidades que lhes permitem um agir cada vez mais intencional e planejado sobre a natureza. Com o trabalho, o homem aprimora suas habilidades físicas e adquire novas capacidades cerebrais. Assim, torna-se capaz de criar instrumentos concretos para mediar a transformação da natureza, como machados e martelos. Também desenvolve instrumentos simbólicos, como a linguagem, que lhes permite uma consequente estruturação do pensamento e da comunicação – habilidades fundamentais para a organização social e para o planejamento de suas ações. O homem conquista funções psicológicas superiores, antecipa suas ações teleologicamente  e, assim, distancia-se de sua condição puramente animalesca e biológica .

Com o desenvolvimento dessas capacidades, torna-se possível a acumulação de saberes gerados pela experiência de trabalho e sua transmissão às gerações mais jovens. A este processo exclusivamente humano, chamamos “educação”. É por conta dela que podemos observar, na singularidade de cada criança, uma síntese de todo processo de desenvolvimento humano enquanto gênero: desde o aprender a se equilibrar sobre dois membros, a aquisição de habilidades de coordenação motora fina, passando pela aprendizagem da fala e, mais tarde, da escrita e, até mesmo, no desenvolvimento da atenção seletiva e do pensamento estruturado. Essas são conquistas muito importantes do gênero humano, que adquirem o mesmo caráter no plano singular.

O processo de inserção dos seres humanos de pouca idade na cultura não ocorre de modo linear e meramente evolutivo: é feito de movimento, crises e contradições internas, que originam saltos qualitativos e neoformações (TULESKI; EIDT, 2006). O comportamento da criança se modifica conforme ocorre seu desenvolvimento. Com ele, altera-se também a forma da criança atender suas necessidades, interagir com o mundo e compreendê-lo – em outros termos, sua chamada “atividade-guia”. Desde o seu nascimento, em cada fase do desenvolvimento há uma atividade-guia distinta (TULESKI; EIDT, 2006): até o primeiro ano de vida, a atividade-guia é a comunicação emocional direta; na primeira infância, a atividade objetal-manipulatória; na idade pré-escolar, o jogo de papéis; na idade escolar, a atividade de estudo; na adolescência inicial, a comunicação íntima-pessoal; na adolescência, idade adulta e velhice, o trabalho. 

Observa-se, assim, que o desenvolvimento humano sintetizado na criança não é um processo passivo: depende diretamente da atividade do indivíduo. Nesse sentido, é possível pensarmos que o meio social em que a criança está inserida apresenta-se como determinante fundamental e, da mesma forma, são determinantes a qualidade e a complexidade das mediações desempenhadas pelos seres humanos mais experientes na cultura – os adultos. É necessário que estes diversifiquem as vivências das crianças de acordo com o seu momento de desenvolvimento, de forma a explorar suas potencialidades.

Interessa-nos perceber ainda que o trabalho se apresenta como atividade-guia ao indivíduo somente na fase mais madura da adolescência, perpetuando-se pela idade adulta e velhice. Isso revela que o trabalho precoce, ainda na infância, não é próprio do desenvolvimento humano, diferentemente do brincar e do estudar. Ao trabalhar, a criança deixa de realizar as atividades que lhes são férteis, formando-se de modo limitado e embrutecido. Em suma, antecipar a atividade de trabalho para indivíduos muito jovens significa retirar da criança a possibilidade de vivenciar uma infância de modo pleno e saudável do ponto de vista do desenvolvimento humano.

Na pesquisa desempenhada por Conde (2016), evidencia-se que o trabalho infantil impacta de forma negativa também sobre o processo de escolarização. As crianças, os adolescentes e os jovens que combinam jornadas laborais com as aulas consomem nessas atividades o tempo que seria destinado para o lazer e o estudo em casa.

A pesquisadora verifica que 64% das crianças, adolescentes e jovens entrevistados estudam uma hora por dia em casa; outros 26,6% não o fazem em nenhum momento além da sala de aula. Além disso, a frequência escolar é menor entre as crianças trabalhadoras, considerando que, por vezes, estas encontram-se cansadas demais para frequentar as aulas. O resultado são problemas no rendimento escolar e o consequente aumento no número de reprovações.

Ainda no que tange à saúde, existem riscos às crianças, aos adolescentes e aos jovens que são próprios das atividades desempenhadas de caráter perigoso. Por exemplo, na fumicultura, verifica-se o contato direto com as folhas da planta, que liberam uma substância tóxica aos seres humanos, ocasionando o chamado “porre de fumo”; o corte de cana-de-açúcar implica o uso de ferramentas cortantes que apresentam sérios riscos de acidentes e mutilações; no processo final da produção de carvão vegetal, desenvolvido em fornos, há riscos derivados da inalação constante de fumaça, que irrita os olhos e as vias aéreas; na horticultura, implica-se o contato direto com agrotóxicos potentes, causando intoxicações; a colheita da laranja e o processamento da castanha de caju, pelo contato direto com o ácido dos produtos, apagam as digitais dos trabalhadores. 

Muitas vezes, as consequências do trabalho infantil sobre a saúde manifestam-se tardiamente, apenas na idade adulta. Verifica-se, então, adultos com problemas ósseos, problemas respiratórios irreversíveis, câncer, dentre outros. Nesse leque de possibilidades, então, pensa-se sobre as chamadas piores formas de trabalho infantil.

Após esta conversa, convidamos você a ver o documentário Território do Brincar – Diálogos com Escolas:


Fonte: Território do Brincar (2015).