Ainda para ilustrar este texto com dados e casos reais, produto das pesquisas que já realizamos, convidamos você a pensar sobre outra situação bastante comum encontrada em contextos rurais e urbanos do Brasil, que entende o trabalho como educativo e parte da cultura de certas regiões do País. É comum frases como "é de pequeno que se torce o pepino" ou "trabalho de criança é pouco, mas quem abre mão dele é louco", conforme observamos em casos como o exemplificado a seguir:


Em pesquisa de campo para coleta de dados sobre o trabalho familiar, entrevistamos um agricultor com 45 anos de idade. Ele nos contou que aprendeu a trabalhar desde pequeninho com seu pai na roça e que, graças ao trabalho, se tornou a pessoa digna que é hoje. Embora nos contasse sobre o problema desenvolvido na lombar de tanto trabalhar agachado, ele destaca que os trabalhos agachados são realizados por seus filhos menores na atualidade. Dessa forma, ensina seus filhos a trabalharem na roça desde cedo. Quando se completa cerca de 5 anos de idade, se ganha uma pequenina enxada de presente. Assim, a criança vai para a roça com a família e com sua enxadinha brincar de ser agricultor e trabalhar ao mesmo tempo. Colheita de plantas rasteiras e buraco na terra para plantar sementes estão entre as atividades em que as crianças da família ou de outras famílias são preferidas devido à baixa estatura que possuem. Conforme seus relatos, antigamente, o tamanho da propriedade determinava quantos filhos uma família deveria ter para "ajudar" na roça. Hoje, com a proibição do trabalho infantil, ninguém mais quer ter filhos. Mas o trabalho é bom e tem que começar desde cedo para aprender, alega.

Relato de Soraya Franzoni Conde, com base em sua pesquisa de doutorado, intitulada A escola e a exploração do trabalho infantil na fumicultura catarinense.

Você já escutou frases parecidas? Narrativas assim são comuns tanto nas áreas rurais, onde predomina a pequena agricultura familiar, como em áreas urbanas, quando a criança trabalha "ajudando" em casa, no ateliê, em restaurantes ou no pequeno comércio familiar, seja ele formal ou informal. Nessas situações, frequentemente encontramos adultos que começaram a trabalhar desde pequenos e, conforme ficaram mais velhos, o tempo de dedicação aos estudos foi diminuindo até que deixaram de estudar para somente trabalhar.

Acontece que, mesmo que tenham passado por todas essas dificuldades e problemas e reconheçam o concorrente desleal que o trabalho é em relação à escola, as pessoas parecem esquecer dessas dimensões quando se trata de exaltar os aspectos moralizantes e dignificantes do trabalho.

Algo parecido ocorre com relação aos problemas de saúde, como a lesão na coluna que impede o trabalhador adulto de agachar e o incita a solicitar a recorrente "ajuda" infantil. A coluna vertebral termina de se formar por volta dos 18 anos de idade. Antes desse momento, é extremamente prejudicial carregar peso ou agachar de forma incorreta e repetitiva.

Devemos pensar que o corpo da criança, ainda em formação, é mais suscetível à intoxicação, lesão, desidratação, entre outros. Dessa forma, ainda que o trabalho infantil seja aparentemente dignificante e educativo, na realidade ele se mostra adoecedor e gerador do abandono, da evasão e da repetência escolar.

E trabalho infantil só ocorre fora de casa? Não, mas podemos pensar que, quando o trabalho da criança ocorre no âmbito familiar, reside uma tênue fronteira entre o trabalho explorado, voltado à produção de uma mercadoria que deverá ser comercializada, e a ajuda familiar. Determinar os limites entre a ajuda e o trabalho explorado é muito difícil, porém não impossível.

Quando a criança substitui o trabalho de um adulto, seja em casa, na lida doméstica, ou em qualquer outro espaço, trata-se, sim, de trabalho. Aí está a diferença. Esse trabalho é diferente de ter que contribuir todos os dias com organização da vida familiar, arrumando a própria cama, os brinquedos, lavando a louça ou ainda auxiliando no preparo das refeições. Não sejamos fatalistas. Para ilustrar isso, vejamos o depoimento de uma adolescente responsável sobre o que ela faz quando não está na escola:

Eu sempre levanto lá pelas 6h da manhã, tiro meu pijama, vou ao banheiro. Ajudo minha mãe a tratar os bichos, galinhas, porcos, perus, coelhos. Tomo café e vou tratar as vacas. Depois, vou ao fumo para capinar e fazer outras coisas que precisam. Quando chega 11h30, vou para casa almoçar, recolher as coisas da mesa e dormir um pouco. Às 14h voltamos para a roça. Depois das 16h volto para casa, cuido das flores, tomo banho e café e vou para a escola. [...] Nas férias... nem posso chamar isso de férias... pois trabalho o dia inteiro quebrando folha de fumo. Minhas férias são um saco! Às vezes, eu fico vomitando porque me dá porre de fumo. Para mim, as férias são durante as aulas escolares, pois trabalho menos do que na chamada “férias”.


CONDE, 2016, p. 102

Conforme a análise de Conde (2016), a adolescente de 14 anos trabalha na roça diariamente das 6h da manhã até às 16h, com pausa para almoço entre 11h30 e 14h, totalizando 7h30 de jornada diária de trabalho. O que você pensa sobre isso?

Pegando esse exemplo para pensar, após essa jornada exaustiva que envolve desde o trato de animais até capinar fumo, ela segue para a casa onde cuida das flores e somente vai à escola no período noturno, gastar as poucas energias que lhe restam depois do dia de trabalho. Nas férias escolares, a jornada diária de trabalho é ainda mais intensa, uma vez que não há escola para alternar o tempo entre o estudo, o trabalho e a fumicultura (produção de fumo). Podemos refletir, ainda, que o depoimento também evidencia o lugar socialmente atribuído às mulheres, em diferentes regiões do mundo e do Brasil. Geralmente, são as meninas as responsáveis pelas tarefas da casa, que envolve a limpeza, a roupa, o preparo das refeições, o trato dos animais e o cuidado com os irmãos mais novos. Já os meninos costumam desenvolver atividades fora do espaço doméstico. 

A fim de mergulhar mais na produção de conhecimentos sobre esse assunto, convidamos você a ver o vídeo Vida Maria


Fonte: Projeto Trajetórias Escolares (2018).

O que você pensou a partir desse vídeo? Como podemos refletir sobre o trabalho doméstico infantil? De tudo o que podemos pensar sobre, podemos destacar que o vídeo também evidencia o quanto meninos e meninas continuam sendo educados para reproduzir as relações de gênero patriarcais hegemônicas na nossa sociedade. Os meninos são educados para a vida e o trabalho fora do espaço privado, ao contrário das meninas. Esse fato evidencia como a cultura se constitui nas relações sociais que estabelecemos desde a tenra idade.

Desse modo, pensando em toda essa conjuntura, convidamos você a explorar o infográfico a seguir que ilustra os dados referentes às atividades desempenhadas, gênero, raça e comparação de quem estuda e trabalha.

Figura 3: perfil das crianças e dos adolescentes trabalhando.

Sobre a questão das atividades trazidas pelo gráfico, convidamos você a pensar mais a respeito do trabalho infantil no campo. Geralmente, as férias escolares coincidem com o período em que os dados do trabalho infantil aumentam no Brasil, tanto no campo como na cidade. É nesse período que ocorrem momentos de plantio e de colheita em diversas culturas e que também o litoral e regiões turísticas apresentam uma grande demanda de trabalho, o que favorece o emprego de crianças, adolescentes e jovens em idade escolar.

Com isso, o tempo que deveria ser destinado ao brincar, ao lazer, aos esportes e ao descanso é tomado pelo cansaço do trabalho. Até quando os filhos das classes trabalhadoras serão destinados a trabalhar desde cedo enquanto os filhos das elites se divertem, aprendem línguas, viajam e descansam? Por que o trabalho como virtude é destinado apenas aos filhos de certas classes em detrimento de outras?