Diferentes concepções da deficiência

Após essas pontuações do vídeo Todos com todos, gostaríamos de convidá-lo a pensar: como que a experiência da deficiência foi compreendida ao longo da história?
A experiência da deficiência não foi compreendida ao longo do tempo da mesma maneira. Houve épocas em que ela foi entendida como um “pecado” e outras, como uma doença, por exemplo. Por isso, convidamos você a conhecer as pesquisas históricas sobre essa temática. Dentre elas, destacamos a pesquisa histórica sobre a representação da deficiência mental, realizada por Pessotti (1984), a qual aponta mudanças significativas nas interações sociais com indivíduos considerados deficientes, da Antiguidade Clássica até hoje. Dessa forma, é possível observar nuances relativas às diferentes concepções de deficiência ao longo da história ocidental.
Na Antiguidade Clássica, o deficiente era negligenciado, desprezado, na medida em que contrariava os ideais de beleza e perfeição tão valorizados na época. Não se considerava qualquer possibilidade de atendê-lo; pelo contrário, o deficiente era escondido ou eliminado. Com a difusão do cristianismo na Europa, o deficiente ganha alma, tornando-se pessoa e “filho de Deus”, porém sem virtudes, sendo segregado em instituições residenciais. Na Idade Média, era a expressão do demônio, precisando, portanto, ser eliminado. Do século XVI ao XIX, enquanto objeto de estudo da medicina, era tratado como caso patológico, ora visto com fatalismo, ora com possibilidades de recuperação.
Os avanços da medicina e de outras áreas do conhecimento, como a Psicologia e a Educação, aliados a uma gradativa visibilidade dos movimentos sociais de pessoas com deficiência ao longo do século XX, possibilitaram novos olhares sobre esses sujeitos. Porém, os padrões normocêntricos vigentes em nossa sociedade continuam produzindo, no século XXI, situações de exclusão social de pessoas com deficiência. Diferentes concepções sobre o fenômeno da deficiência coexistem ainda hoje, sendo identificados os modelos caritativo, biomédico e social.

O modelo caritativo, com forte influência cristã assistencialista, é bastante presente em falas e posturas do senso comum e traduz uma visão que reduz a pessoa com deficiência a alguém digno de piedade, vítima de um infortúnio ou até de algum tipo de castigo divino.
O modelo biomédico representa um avanço nessa concepção da deficiência, embora permaneça a perspectiva individual dessa condição como uma tragédia pessoal. As explicações científicas da modernidade sobre as diferentes condições de deficiência, expressas no modelo biomédico, consistem em uma forma de compreensão racional que focaliza os desvios de desenvolvimento.
Nessa perspectiva, as desvantagens sociais das pessoas com deficiência são compreendidas como decorrência de elas terem algum tipo de limitação. Nesse modelo, a deficiência é entendida como uma experiência individual, vivenciada pelo sujeito que possui uma lesão.
Em contraposição a esta concepção de deficiência, surge, no final da década de 1970, o modelo social. Proposto pelos movimentos sociais de pessoas com deficiência, esse modelo teórico construiu sua argumentação separando a lesão da experiência da deficiência, como explica o Prof. Adriano Nuernberg na videoaula Modelos Teóricos de Deficiência (2018):
Fonte: Universidade Federal de Santa Catarina (2018).
Gostaríamos de destacar um trecho da fala do professor para que você pense conosco a respeito do que é tratado. Segundo Adriano,
a experiência de viver a deficiência para esses autores, especialmente sociólogos, homens, com deficiência física, é a de enfrentamento de barreiras em um ambiente que não acolhe a sua variação corporal. Ou seja, a pessoa vive a deficiência no momento em que a sua corporeidade, a sua variação corporal não é contemplada nos espaços. Seu modo de funcionar, seu modo de comunicar, seu modo de relacionar-se com as informações do mundo não é contemplado na vida social, impondo assim barreiras a sua participação, a sua condição de equidade como ser humano. Essa foi a primeira geração do modelo social que foi sucedida por uma segunda geração formada especialmente por cuidadoras de pessoas com deficiência, mães de pessoas com deficiência, e por mulheres com deficiência que fizeram uma crítica bastante interessante ao mesmo tempo reconhecendo os avanços da primeira geração como, por exemplo, a compreensão da deficiência como uma forma de opressão social, como tendo em parte a experiência de viver num ambiente que não acolhe a sua variação corporal; mas também avançaram teoricamente reconhecendo também [...] que a corporeidade, a deficiência e sua dimensão [...] corporal também produz uma forma de identidade. [...] As teóricas feministas com deficiência propuseram uma crítica à primeira geração de autores do modelo social a partir da noção de interdependência. Ou seja, aquilo que os primeiros teóricos queriam omitir no seu modelo teórico, o fato, por exemplo, de que muitas pessoas com deficiência são dependentes para algumas atividades de vida diária, como comer, levantar-se, banhar-se, era algo que a primeira geração evitou comentar buscando dar maior visibilidade para as barreiras do ambiente, para a dimensão pública da experiência da deficiência. As feministas com deficiência procuraram demonstrar que a diversidade no contexto da deficiência é grande e que há pessoas que demandam cuidados e que, ao invés de simplesmente levantarmos a bandeira de que a igualdade seria uma conquista por meio da mera remoção de barreiras, propuseram a noção de que a conquista da igualdade passava por conquistas mais amplas e pelo reconhecimento da diversidade da experiência da deficiência e da sua heterogeneidade.
Então, podemos pensar que o grande salto da primeira para a segunda geração do modelo social é o reconhecimento da maior heterogeneidade da experiência da deficiência; o fato de que algumas pessoas demandam cuidados e que isso é inerente à condição humana. Mas, refletindo sobre isso, perguntamos: como a legislação brasileira aborda questões relativas a pessoas com deficiência?
A concepção de deficiência como restrição de participação social de um corpo com impedimentos, na perspectiva do modelo social, está presente na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e Protocolo Facultativo (2006), ratificada como emenda constitucional pelo Brasil em 2008. Em seu Artigo 1º, está definido que:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Diniz, Barbosa e Santos (2009) destacam que a Convenção redefine a deficiência como uma combinação entre uma matriz biomédica, que reconhece os impedimentos individuais, “e uma matriz de direitos humanos, que denuncia a opressão” (p. 66). Para os autores, os embates entre os modelos biomédico e social de deficiência mostraram a “insuficiência do conceito biomédico de deficiência para a promoção da igualdade entre deficientes e não deficientes” (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 66).
A desvantagem social vivenciada pelas pessoas com deficiência não é uma sentença da natureza, mas o resultado de um movimento discursivo da cultura da normalidade, que descreve os impedimentos corporais como abjetos à vida social. O modelo social da deficiência desafiou as narrativas do infortúnio, da tragédia pessoal e do drama familiar que confinaram o corpo com impedimentos ao espaço doméstico do segredo e da culpa. As propostas de igualdade do modelo social não apenas propuseram um novo conceito de deficiência em diálogo com as teorias sobre desigualdade e opressão, mas também revolucionaram a forma de identificação do corpo com impedimentos e sua relação com as sociedades.