A morte e a construção do sentido do “para sempre”: uma tarefa da escola?

“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata”
Vamos tratar neste momento da experiência da morte, experiência essa que todos passam, seja pela morte de um professor, um colega ou um familiar. As causas podem ser diversas: morte violenta, morte por doenças sexualmente transmissíveis, morte vitimada pela “guerra”, entre policiais e o tráfico, por calamidades públicas, produto do descaso do Estado, morte por doenças negligenciadas, suicídios e tantas outras. Enfim, a morte é uma realidade vivida cotidianamente por todos nós, mas em lugares com alto índice de vulnerabilidade, que envolve fatores como a presença constante da violência e extrema pobreza, essa realidade está muito mais presente e pode ser extremamente traumática. Veja que a morte, especialmente a morte violenta, aparece como um fenômeno fortemente ligado às condições socioeconômica e de vulnerabilidade, situações nas quais se encontram as camadas menos favorecidas da sociedade.
É nesse momento que precisamos questionar o papel do educador como alguém que pode auxiliar as crianças, adolescentes e jovens que estão vivenciando essa experiência. Sabemos que o processo de aprendizagem anda de mãos dadas com o amadurecimentos das nossas emoções. Como a escola trata a questão da morte? Há espaço para expressar os sentimentos que a experiência da morte impõe?
Para pensarmos sobre isso não é necessário voltar muito no passado. Vamos tomar “o agora” como ponto de partida e voltemos àquela afirmação anterior, na qual dissemos que a escola é também um espaço de reprodução do mundo social no qual está inserido. Não podemos negar que a morte nesses territórios não combina com o modelo de consumidor e bem-estar social que se deseja incentivar nos dias atuais. Por isso, torna-se ainda mais fácil o seu “desaparecimento” ou a possibilidade “desconfortável” de lidar com os sentimentos que decorrem da experiência do luto. Busca-se modelar um ser humano que tenta refletir a falsa alegria e o encantamento de uma sociedade de consumo narcisista, feliz, saudável, bela e desconectada de contextos de extrema pobreza. Desse modo, todos os elementos que não fazem parte dessa sociedade acabam sendo varridos para “debaixo do tapete”, ou seja, a pobreza, a violência, o diferente, o doente e a morte. A esse respeito, Certeau (2000) afirma:
Os moribundos são proscritos porque são os desviantes da instituição por e para a conservação da vida. Um luto antecipado, fenômeno de rejeição institucional, os coloca de antemão na câmara da morte. Envolve-os de silêncio ou, pior ainda, de mentiras que protegem os vivos contra a voz que poderia quebrar essa clausura para gritar: “estou morrendo!”. Este grito produziria uma morte de aborrecedora deselegância.
Assim, a morte e o luto passam a ser escondidos. Uma mentira cujos alicerces se assentam em uma espécie de negação coletiva da morte cotidiana. Essa afirmação nos leva a uma reflexão em relação ao educador. O educador não estaria interpretando essas experiências no estudante da mesma forma? Será que o educador estaria colaborando para que continuássemos a não falar sobre morte e luto nos contextos escolares? Se assim for, essas crianças, adolescentes e jovens estão aprendendo na escola a se isolar e não buscar ajuda para compreender o que estão sentido? Cabe aqui uma outra questão: por que a escola não assume para si parte desse trabalho de ajudar esses sujeitos a expressar essa dor?
Acreditamos que as escolas e os professores também têm o papel de auxiliar essas crianças, adolescentes e jovens a compreenderem melhor essas sensações que estão experimentando e serem capazes de expressá-las, aliviando esses sentimentos. Com maestria, Alícia Fernández (2001) corrobora com esse apelo quando afirma que:
Ser ensinante significa abrir um espaço para aprender. Espaço objetivo e subjetivo em que se realizam dois trabalhos simultâneos: a construção de conhecimentos e a construção de si mesmo, como sujeito criativo e pensante.
É nessa construção simultânea que a educação precisa manifestar seu compromisso com o estudante, com a revisão crítica e sensível dos valores da escola e, sobretudo, com o educador. Conversar sobre o fato de que, quando uma pessoa querida morre, sentimentos como tristeza e revolta podem surgir, e que sentir essas sensações faz parte da vida humana. Possivelmente, o estudante sentirá que sua angústia é compreendida e aceita por outras pessoas; sendo assim, ele não estará sozinho e se sentirá mais acolhido no ambiente escolar.
O sentimento de raiva após a morte de alguém muito especial é uma reação esperada e, especialmente no caso dos jovens, esse sentimento pode se manifestar por meio de comportamento irritadiço, pesadelos, medos ou agressão dirigida aos familiares e educadores. A raiva ainda pode estar associada ao sentimento de abandono e exclusão do Poder Público, que poderia cuidar melhor dos cidadãos. Em tese, a maioria das mortes não naturais, ou seja, mortes que não são causadas pelo envelhecimento, são mortes evitáveis. Comportamentos como: perda de interesse por atividades, insônia, medos, isolamento, dificuldade escolar e brigas na escola são comuns. Tais comportamentos podem ser sinais de um sofrimento que está sendo vivido na solidão por esse estudante. Cabe ao educador e à família identificar esses sinais para que possam se colocar à disposição e dialogar por meio de uma escuta ativa e acolhedora, conforme se viu. Podemos concluir que o educador deve ser preparado o suficiente para ser um agente transformador da experiência vivida na escola.
Assim, convidamos Sêneca para proferir as palavras finais sobre esse assunto, na esperança que ele sobreviva à inquietação que fortuitamente pode ter provocado em cada educador.
Nisto erramos: em ver a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte.
Do ponto de vista das políticas, quais estratégias se mostram efetivas para redução de vulnerabilidades sociais, por meio da criação de uma cultura de tolerância e respeito à dignidade humana?