Nesse processo de tornar comportamentos comuns da infância em sintomas de doenças, sentimentos comuns como tristeza, raiva, alegria e medo passam de sentimentos naturais a diagnósticos patológicos. Depois disso, provavelmente serão tratados com  medicamentos fortes “da moda”.  No Brasil, por exemplo, o metilfenidato (princípio ativo da Ritalina e do Concerta), remédio prescrito para crianças, adolescentes e jovens diagnosticados com TDAH, teve suas vendas aumentadas de 71.000 caixas no ano de 2000 para 2.000.000 caixas em 2010, segundo dados do Conselho Federal de Psicologia (CFP), citando o Instituto de Defesa de Usuários de Medicamentos (IDUM).

Figura 4: relação entre o consumo de metilfenidato e a escola.

O Brasil é o segundo maior consumidor de metilfenidato no mundo, perdendo somente para os Estados Unidos. Esses dados não parecem razoáveis; soam mais como uma necessidade “contagiosa” de vender medicamentos do que verdadeiramente um aumento na quantidade de casos de escolares com TDAH. Esse processo de medicalizar a vida e o comportamento, buscando alcançar um modelo de “normal”, chamaremos de “normatização”. Essa “normatização” da vida pode ser discutida a partir da microfísica do poder, uma teoria pensada por Michel Foucault (1999).

A ideia de normatização é baseada na ideia de exclusão de um certo tipo de  “outro”. E quem é esse outro? É o doente, aquele que não se encaixa em um padrão de “bom”, de “normal”, estabelecido pela nossa cultura. Nesse caso, o outro que é excluído pela normatização é o “aluno problemático”, aquele que não consegue se encaixar no modelo que a escola e a sociedade desejam. É como se fosse possível medicalizar a pobreza, a fome, a violência e tantos outros problemas sociais e econômicos que dificultam a aprendizagem e a permanência desses jovens na escola. A questão central aqui é: o desconforto que esse aluno sente pode ser reduzido a uma doença? Ou é resultado de um mundo social muito mais complexo, que envolve também essas situações de vulnerabilidade social?

De acordo com Costa e Silva (apud AGUIAR, 2004):

Já existem 500 tipos descritos de transtorno mental e do comportamento. Com tantas descrições, quase ninguém escaparia a um diagnóstico de problemas mentais. [...] se a criança está agitada na escola, podem achar que está tendo um transtorno de atenção e hiperatividade. [...] houve um excesso de diagnósticos psiquiátricos. Essa variedade atende mais aos interesses e à saúde financeira da indústria que à saúde dos pacientes.


COSTA E SILVA apud AGUIAR, 2004, p. 85

Diante de tamanhos e tantos transtornos, quem escapa? É preciso um esforço para vermos para além do que está dado para nós como uma verdade única. O filósofo Foucault (1999) nos ajuda nesse exercício de ver. Partindo do princípio de que em cada momento histórico existe uma forma dominante de pensar, e que por isso é hegemônica, podemos depreender que a ação política possui natureza humana e, como discurso, penetra no social e ganha forma coletiva. O discurso médico que busca normatizar esse aluno é, nesse sentido, uma reprodução social de um discurso que induz e mantém a exclusão social e econômica daqueles que são diferentes, transformando-o em pessoas deslocadas. Estes estão em posição desigual daqueles que se encaixam com mais facilidade, mesmo que essa facilidade em se encaixar não dependa apenas dele, mas sim de toda a sua trajetória pessoal e familiar.

A escola pode ser um espaço emancipatório. Por outro lado, pode ser, também, um lugar de violências, de negação das emoções, de violações de direitos e de silenciamento e invisibilização, sendo um espaço de reprodução dessas formas de dominação. É preciso superar essa dicotomia e compreender a dimensão humana a partir desse espaço que é a escola, cujo objetivo é oportunizar o desenvolvimento humano saudável em todos os seus aspectos, lidando com sentimentos inerentes às pessoas – sobretudo aquelas que vivem em extrema pobreza, tendo que lutar pela sobrevivência minuto a minuto de suas vidas –, como o sofrimento, a dor, a raiva, o medo, o amor, a alegria e tantos outros.

Figura 5: relação entre o consumo de metilfenidato e a escola.

Vamos, de início, qualificar o ser-diferente  para entendermos o sofrimento psíquico motivado pelo preconceito e discriminação. Que sentido o “diferente”  assume no espaço escolar? Diferente em relação a quê? A quem? A que padrão? Para ilustrarmos o que estamos chamando de “diferente”, temos de pensar nas mulheres, nos negros, nos homossexuais, nas pessoas com necessidades especiais, nos indígenas, nos ribeirinhos, nos ciganos, nos pobres, nos “loucos” e em todos aqueles cujos discursos são silenciados e desqualificados em função desse processo de normatização.